A linguagem de vestir corpes pretes: uma expressão estética negra*

A linguagem de vestir corpes pretes

A interrelação entre corpo, imagem e estilo dá origem a uma tecnologia de comunicação pessoal. É um diálogo poderoso diretamente com os objetivos profissionais, pessoais e espirituais na vida de uma pessoa. Afinal, para além de a imagem passar uma mensagem textual, a imagem também é a primeira mensagem que comunica: quem somos, o que queremos e para onde iremos. Para refletir: em um filme ou em uma peça de teatro, o figurino é a primeira comunicação visual apresentada. A imagem projeta elementos como o tempo, o espaço e a identidade da narrativa e da personagem.

Como diz a doutora e pedagoga Nilma Lino Gomes: “A expressão estética negra é inseparável do plano político, do econômico, da urbanização da cidade, dos processos de afirmação étnica e da percepção da diversidade.”1 Uma vez que as tecnologias das indumentárias são fundidas às tecnologias da vida cotidiana das pessoas de pele preta, o sensível e o inteligível se entrelaçam beneficiando cada indivíduo prete a entender-se como cidadão político, atuante e pertencente. O vestir é uma linguagem, um saber, um ato de autoconhecimento, um exercício que estimula a criatividade e passa uma mensagem textual sobre uma pessoa. Quando encontramos alguém pela primeira vez, fazemos um julgamento imediato dessa pessoa. Estabelecemos com ela uma relação visual, verbal e textual em que elementos como aparência, linguagem corporal e expressões faciais afetam a impressão que causamos. Em uma sociedade racista, classista, homofóbica e mais um conjunto de preconceitos que a norteiam, tais elementos visuais influenciam o julgamento do outro quanto à confiabilidade, à profissão, à situação financeira e também quanto à afinidade cultural, social e intelectual que essa pessoa possa ter e/ou ser. Desse modo, questiona-se se a imagem é percepção ou imagem é construção. Depende da ocasião, da aplicabilidade e do prisma sobre a vida. 

Nas práticas da consultoria de imagem e estilo, comumente, trabalha-se com sete estilos universais, conceito criado na década de 1980 pelas norte-americanas Alyce Parsons e Mimi Dorsey: clássico/tradicional, criativo, elegante, esportivo/natural, moderno/dramático, romântico e sexy. Em um retrospecto histórico-cultural observa-se que, em determinadas áreas do conhecimento, cada estilo tem sua presença mais marcante. Por exemplo, no ambiente corporativo, o clássico e o elegante são praticamente obrigatórios. A problemática está na padronização estética dos estilos universais, seja no tecido, na padronagem, seja nos acessórios, nos calçados e nos cabelos. Nesses aspectos, pessoas pretas, que por meio do próprio corpo manifestam sua história, sua identidade e seu lugar na sociedade, caem pirâmide social abaixo. Porque seu tecido é algodão cru; sua padronagem é colorida; seu upcycling é “arte em retalho”, nomenclatura usada por Marisa Moura2, professora, artesã e pesquisadora da cultura negra de raiz; de modo que seus adereços originam das pinturas, das miçangas, do barro; seu calçado é pisante, seu cabelo é picumã e sua estética é múltipla de significados e simbologias. Povos ancestrais, paradoxalmente, simples e complexos. São arte. São cultura. São política. São belos. Nesse ínterim, a imagem, enquanto ferramenta de comunicação, é sucateada como vetor de manipulação para “o belo definir o feio para se beneficiar”, parafraseando Bia Ferreira, cantora, compositora e musicista3.

O verbo descolonizar é essencial para o amadurecimento do indivíduo em conjunto à construção do seu próprio senso crítico. Ao contrário do que a maioria compreende, o processo de descolonização é urgente para povos historicamente não-colonizados, que, em contrapartida, foram treinados a normatizar caminhos simplistas e limitadores como ‘certo ou errado’, ‘pode ou não pode’, ‘é isso ou é aquilo’. Ou seja, a cultura ocidental trabalha a unicidade com o intuito de padronizar, controlar e oprimir; enquanto as tradições de matriz africana veem a unicidade e a multiplicidade como elementos fundamentais para integrar e tecer juntes. Para quebrar os paradigmas daquilo que está posto, é vital vivenciar lugares, culturas, pensamentos, experiências, corporeidades, tecidos e padronagens diferentes do seu habitat natural. Sair da zona de conforto para ir ao encontro da expansão do seu campo de visão e, consequentemente, a amplitude do seu repertório para maturar as diversas práticas de atuação na sua vida. Afinal, constitucionalmente falando, temos o direito de morrer de fome, mas não temos o direito de andar pelades em público. 

Crédito da foto: Deka Carvalho

Crédito da foto: Deka Carvalho

Alô, alô, comunidade preta! Em meio a tantos paranauês, merecemos e podemos usar e abusar das tecnologias do corpo, da imagem e do estilo para deslocar a imagem do corpo negro inferior e subserviente para o corpo negro articulado, criativo e intelectual. Este é um dos caminhos para expressarmos, genuinamente, aspectos do nosso estado de espírito e nossas intenções sociais, valores culturais e espirituais. É possível construir e fortalecer uma definição visual, além da aparência, respeitando as suas individualidades e complexidades enquanto corpe prete no mundo contemporâneo. Devemos sim enaltecer atributos físicos; compreendendo as suas necessidades; valorizando as suas vicissitudes; respeitando a sua personalidade para resgatar essências ocultas da autoestima de forma a transformar as sequelas resultantes das violências do racismo em potência. Como afirma a historiadora Beatriz Nascimento: “A questão econômica não é o grande drama, percebe? Apesar de ser um grande drama, não é… [o principal]. O grande drama é justamente o reconhecimento da pessoa, do homem negro que nunca foi reconhecido no Brasil4”. A afluência é de dentro para fora. O contrário, é reprodução ao invés de transcedência.

*Texto originalmente publicado no livro “Economia afetiva: O novo inteiro” – Trama Afetiva 2022.

Este artigo foi escrito por Paloma Botelho

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Crédito da foto: Deka Carvalho

Idealizadora da Rede Consultoras Negras de Imagem e Estilo – RCNI. Consultora e Mentora de estilo, moda artivista e idealizadora de projetos afrocentrados em moda. Graduada em Comunicação, especializada em Coolhunting e pós-graduada em Direção de Criação e Styling de Moda pelo SENAC. Idealizadora dos projetos Negrxs Diálogos de Moda, Rede Consultoras Negras de Imagem e Estilo – RCNI e Afro: Passado, Presente e Futuro. Interpreta estilo e corpo como plataformas de comunicação e visa expandir o conceito: “Vestir-se bem para as pessoas da pele preta está para além da vaidade, do poder aquisitivo e das tendências da moda: é uma armadura de proteção contra as violências do racismo”. Ex-Coord. do Comitê Racial e de Diversidade do Instituto Fashion Revolution Brasil, atualmente está Delegada Suplente do Setorial de Moda do Estado de São Paulo. Professora convidada do Senac São Paulo e Diretora de Racialidade da Trama Afetiva.

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