“Você conhece alguma loja que venda roupas masculinas mas que não pareçam masculinas?”.
A pergunta pode soar estranha, mas não foi, de longe, a primeira vez que eu a escutei. Na verdade, eu já tinha ouvido essa pergunta tantas vezes que possuía uma lista de lojas em um arquivo, prontas para serem exploradas no momento que o gatilho fosse apertado de novo.
O fato é que, em termos de tendências mundiais, a “agenerização” (termo que eu mesmo cunhei para falar de moda sem gênero) do estilo está cada dia mais presente – e sem maiores estranhamentos – nos meios sociais. Pessoas que antes pareciam estarem escondidas em seus casulos receosos dos julgamentos externos, tem surgido com maior frequência e ocupado não somente as telas dos smartphones, mas também cargos de prestígio em grandes empresas, palcos de turnês mundiais e claro, as esquinas da sua casa. Por que isso está acontecendo?
Primeiramente, é necessário entender o que “sem gênero” quer dizer. O termo é usado como guarda-chuva para identificações não-binárias, ou seja, aquilo que foge do binarismo homem/mulher. Debaixo dessa definição, existem pessoas que se identificam com ambos os gêneros de maneira que são fluídos entre os dois, com nenhum gênero ou até com um “terceiro” gênero. Essas identidades não tem a ver com a sexualidade das pessoas, podendo elas serem hétero, homo, bi ou panssexuais.
Com essa definição em mente, precisamos também traçar o caminho de volta para os primórdios da história da moda, onde aprendemos que os conceitos que entendemos como as origens das indumentárias modernas se dá por volta do século XIII, com as roupas tendo inicialmente a finalidade de diferenciar homens e mulheres. Esses são conceitos que carregamos até hoje e os levamos inclusive para o momento antes de nascer dos bebês, com os enxovais sendo escolhidos com cores que remetem aos papéis de masculino e feminino, isso sem falar nos monumentais chás revelação, que anunciam o gênero do bebê de maneira criativa através da amostragem do azul ou do rosa após um ato dramático.
Apesar disso, há registros na história da humanidade que falam sobre inversões desses papéis, como a história da rainha egípcia Hatsheput de 1458 a.C., que governava o Egito usando indumentárias masculinas como forma de mostrar sua igualdade perante os homens. Na ficção, a guerreira Mulan do famoso filme da Disney de 1998, se veste com roupas masculinas para poder servir o exército e salvar seu pai doente de cumprir tal papel.
Já de volta a vida real e a tempos mais modernos, outras notáveis e rebeldes figuras adotaram a mesma política de reivindicação dos papéis de gênero como forma de demonstração de liberdade às imposições sociais e como ferramentas para enfrentamento de suas batalhas pessoais. David Bowie, Grace Jones, Lady Gaga, Annie Lenox, Ney Matogrosso, entre tantos, foram responsáveis por transgredir o gênero e serem pioneiros a fazer isso em mídias de escala global.
Há neste transgredir um desejo de liberdade que se aflora ainda mais com o advento da pandemia e da guerra na Ucrânia, situações essas que colocam o ser humano frente a sua própria fragilidade e finitude. Diante das catástrofes e do seu fim iminente, segue-se o questionamento humano do “por que se reprimir?”. O ator norte-americano Billy Porter, conhecido por usar longos vestidos em suas aparições formais, declarou: “Meu desejo é ser uma obra de arte política libertadora todas as vezes que entrar em cena”.
Ainda há o fator das redes sociais no Zeitgeist (termo alemão que significa livremente “espírito do tempo”) da geração Z. Com as conexões e referências visuais tão presentes e intrínsecas no dia-a-dia, nunca foi tão fácil (e tão difícil) se posicionar através da imagem. A ascensão das pautas feministas e LGBTQIA+ tomaram proporções maiores do que nunca e a liberdade está cada vez mais latente a quem antes se vira oprimido pelos papéis impostos supracitados, permitindo que “pessoas comuns” tenham acesso as roupas representativas e que as possam usar de maneira integrada – sem sentir-se fantasiado ou estranho no meio das pessoas, uma vez que há um senso de comunidade se construindo através da modernidade do digital, onde pessoas afins se encontram e constroem um universo onde todos fazem parte.
Este senso de comunidade, segundo o sociólogo francês Émilie Durkheim, é responsável por grande parte do também senso de alegria dos seres humanos. Ele afirma que a sensação de harmonia e energia vem do encontro de pessoas afins, que compartilham objetivos em comum, desde a prática de esportes até o senso de estilo. E, afinal, o que é vida se não a busca constante por alegria e consequentemente, felicidade?
A fórmula que corresponde ao questionamento inicial deste artigo então, se revela através da rebelião contra os papéis pré estabelecidos, somada com a vontade de pertencimento e a busca pela completude, de se sentir confortável dentro do próprio corpo, longe dos papéis previamente impostos pela sociedade patriarcal.
Recentemente, a apresentadora de talk show e comentarista política norte-americana Candace Owens, que também atua como ativista conservadora, criticou o cantor britânico Harry Styles por usar as roupas sem gênero, dizendo a polêmica frase: “Tragam de volta os homens masculinos!”, afirmando que uma sociedade não pode ser forte sem papéis de gênero bem definidos.
Tal comentário pode nos instigar a pensar e considerar que a moda pode ser cíclica e que os movimentos sociais pelo vestir sempre apresentarão oposições, e as oposições fazem com que aconteça a rotatividade: Assim como na política, na economia e na natureza. No entanto, é importante considerar que a moda sem gênero faz parte de uma identificação pessoal que vai além das tendências de moda: Ela é um veículo para auto expressão e perpetuação do ser humano enquanto ser racional e capaz de declarar-se dono de si.
Além da minha humildade lista de lojas locais que já incorporaram o genderless, grandes marcas como Louis Vuitton, Dior e Gucci também agregaram em suas coleções peças para todEs (assim mesmo, com E), frente a necessidade de atender ao novo consumidor que está ciente de si enquanto parte da sociedade, o que mostra o verdadeiro movimento feito por esse novo-velho vestir que não pretende ir a lugar algum.
Referências:
CARVALHO, Cristine. Construções Filosóficas no Vestir. Fev/2023. Curso livre.
CARVALHO, Cristine. O Novo Vestir x O Moderno Sentir. Fev/2023. Masterclass.
SHAH R. David. Connectivity and Community. Viewpoint Colour: The Colour Book, Holanda. Volume 11. Pág. Inicial 13 até Pág.16. Publicado em 2022.
STRELITZ, Nick. The History of Gender Bending Fashion. Cityline. Disponível em: https://www.cityline.tv/2021/06/25/history-101-gender-bending-fashion/ Acesso em: 15 de Fevereiro de 2023 às 13h.
NEWMAN, Cathy. Gender-bending fashion rewrites the rules of who wears what. National Geographic. Disponível em: https://www.nationalgeographic.com/culture/article/gender- bending-fashion-rewrites-rules-who-wears-what Acesso em: 15 de Fevereiro de 2023 às 15h.
Este artigo foi escrito por Naná Freitas
Pós graduando em Moda e Estética pela Universidade de São Paulo (USP), consultor de imagem pela Universidade Belas Artes, especialista em estilo masculino e em cores, com formações nacionais e internacionais por mestres como Tay Borges (Belas Artes), Karen Barbé (Doméstika Chile), Blanca Lihanne (Pantone Color Institute), Luciana Ulrich (Studio Immagine), Pedro Gargalaca (Coralis), Hugo Vincenzo (Chromossoma), Carol Garcia (Bureau de Estilo), Raquel Anna (Senac), Gabriella Geremias (CIEM) e Cristine Carvalho (SEBRAE). Atua no mercado de moda há 12 anos e já trabalhou em parceria com lojas como Zara, Arezzo, Capodarte, Swarovski e MOB.