Alta-Costura: o patrimônio vivo da moda na atualidade

Artigo de Lidia Rogatto

Nascida no final do século XIX em Paris, a alta-costura é frequentemente associada ao luxo e às grandes grifes, mas o que realmente define este termo é algo muito mais específico e regulamentado. Criado por um decreto do Ministério da Indústria da França em 1945, o conceito de alta-costura é juridicamente protegido por lei. Na prática, ele se aplica a um conjunto exclusivo de maisons que seguem critérios rígidos para a produção de uma moda de excelência e da mais alta qualidade, feita sob-medida e de forma artesanal.

Entre os numerosos critérios que definem essas maisons, está o fato de estarem localizadas em Paris, mais especificamente no chamado “Triangle d’Or”, o epicentro da alta-costura que se organiza entre a avenida Montaigne, a avenida Georges V e a avenida Champs Élysées. Além disso, para ser considerada membro permanente da Fédération de la Haute Couture et de la Mode (FHCM, criada em 1868), é esperado que cada casarealize dois desfiles por temporada — um para a coleção primavera-verão (em janeiro) e outro para a coleção outono-inverno (em julho), a fim de demonstrar inovação no design e reforçar o poder da marca perante a mídia.

A FHCM também postula sobre o número mínimo de profissionais que devem estar empregados no setor, bem como o número de peças que são apresentadas em cada coleção, com diretrizes voltadas à qualidade e à autenticidade do processo. Essas normas, que regem desde o número de ateliês envolvidos até a estruturação das coleções, têm como fundamento a preservação da integridade dos métodos artesanais. Vistas como um todo, são exigências que têm como objetivo garantir a continuidade da tradição e a exclusividade da alta-costura em um momento extremamente sensível para a manutenção destesavoir-faire de excelência, do qual o setor depende não apenas para a sua sobrevida mas também para a demonstração de sua relevância no cenário atual.

Fachada histórica da maison Dior, na Avenue Montaigne, 30 (foto: Adrien Dirand – Vogue)

Caracterizada pela produção lenta, manual e ultra-especializada,a alta-costura desfila 50 looks por ano, em um processo queexige uma cadeia de produção estruturada e uma atenção meticulosa aos detalhes. Um único vestido de alta-costura pode levar até 6.000 horas para ser feito, refletindo a dedicação necessária para alcançar a perfeição sob a forma de bordados e múltiplos embelezamentos minuciosos. Estes são realizados pelos métiers d’art, e constituem o verdadeiro coração da alta-costura: ateliers especialistas em marroquinaria (couro), penas, metais preciosos, plissado, chapelaria, entre outros ofícios.

Em uma época marcada pela globalização e pelo fast fashion, é quase impensável que a confecção sob-medida de um único vestido dependa de 10 provas, ou mesmo que ao se tratar de uma peça “mais simples” da Chanel, quatro profissionais estejam diretamente envolvidos na sua produção – a première main(costureira-chefe), e três costureiras subordinadas. Trata-se de uma expertise de altíssimo nível, cuja estimativa não ultrapassa 2200 pessoas qualificadas ao redor do mundo. Para efeito comparativo, é estimado que apenas no Brasil o setor de vestuário contabilize cerca de 8 milhões de pessoas, entre trabalhadores formais e informais. 

Esse nível de especialização e o reduzido número de profissionais envolvidos explicam, em parte, a exclusividade e a raridade da alta-costura. Não é por acaso que apenas 16 casas possam, legalmente, intitular-se de “alta-costura” – entre elas, as icônicas Chanel, Christian Dior, Giambattista Valli, Givenchy, Jean Paul Gaultier, Maison Margiela e Schiaparelli –, e que apenas 7 constituam a lista de membros correspondentes (maisons de prestígio cujos ateliers se encontram fora de Paris) –, como as casas italianas Giorgio Armani, Valentino e Versace.

Assim como é seleto o número de casas e de profissionais envolvidos diretamente no setor, também é extremamente raro o grupo de clientes ao redor do mundo: aproximadamente 4000 pessoas, entre celebridades que desfilam em cerimônias de tapete-vermelho e membros ilustres, como a rainha Rania da Jordânia. Para atender a esse público exclusivo, o valor de uma peça de alta-costura pode variar significativamente, indo de 9.000 a até 1 milhão de euros, a depender da complexidade do design, da matéria-prima e do número de horas de trabalho artesanal envolvido na criação da peça.

Renda preta sendo adornada com anéis de metal prateado, no Atelier Montex, para Chanel (foto: François Goizé – WWD)

Para acompanhar o nível de excelência de cada item, os desfiles de alta-costura são verdadeiros espetáculos, com cenários grandiosos e convidados distintos. Só para se ter uma ideia do impacto financeiro do setor, estima-se que a repercussão midiática dos 29 desfiles da semana de alta-costura de janeiro de 2025 tenha gerado cerca de 200 milhões de euros em visibilidade global. O impacto das fashion weeks é multifacetado: além de fortalecerem as marcas por meio de designers renomados e embaixadores de prestígio, os desfiles funcionam como poderosos instrumentos de divulgação em um mercado cada vez mais globalizado e interconectado.

Desfile outono-inverno 2024, Schiaparelli, assinado por Daniel Roseberry

A expansão da alta-costura para um cenário global, que ultrapassa os limites de Paris, é resultado das mudanças provocadas pela instauração do prêt-à-porter nos anos 1960. Essa revolução transformou a dinâmica do setor ao redirecionar os investimentos para linhas mais rentáveis de vestuário, além de cosméticos, perfumaria e acessórios. Para garantir sua sobrevivência frente à produção em massa e ao ritmo acelerado da moda, a alta-costura passou por um processo de atualização, jamais deixando de preservar sua identidade como um patrimônio único e exclusivo em um mundo cada vez mais homogêneo.

Ao longo de toda a sua história, a alta-costura conseguiu proteger sua relevância ao equilibrar tradição e inovação, mantendo-se fiel aos processos artesanais que a definem. A importância de preservar os ateliers e os ofícios que sustentam essa prática vai além da mera continuidade de uma estética: trata-se de garantir a sobrevivência de um saber especializado, crucial para a manutenção da identidade do setor. Esse patrimônio vivo, representado pelas maisons, seus artesãos e os múltiplos agentes envolvidos no setor, é essencial não apenas para a moda, mas também para o reconhecimento da alta-costura como uma expressão cultural única, que resiste às pressões da produção em massa e da globalização.

Este artigo foi escrito por Lidia Rogatto

Lidia Rogatto é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero, mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp, e atual membro da AICI. 

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